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IV. Patois: O sincretismo mantrico da linguagem Rastafari
Os rastafaris, assim como tantos outros nichos culturais de todos os lugares do mundo, possuem uma maneira própria de se expressar, de usar a língua. O mais comum é a adoção de um vocabulário básico, constituído de gírias, que são derivações fonéticas de palavras ou neologismos, palavras criadas, cujo sentido escapa a terceiros, não pertencentes ou não familiarizados com determinado grupo (ou tribo cultural). O fenômeno da criação e utilização de gírias é parte de um processo natural de constituição de uma identidade, de um SER ALGUÉM.
No caso dos rastafaris, este recurso gerou um repertório, (vocabulário ou léxico) e uma gramática com semântica e léxico (vocabulário) tão peculiares que a fala dos rastas certamente se aproxima do status de um dialeto, uma língua secundária. A linguagem rastafari surgiu na Jamaica, ilha do Caribe que foi um importante centro da monocultura latifundiária de diferentes momentos do ciclo da cana-de-açúcar (período da economia ocidental em que predominou o comércio da cana-de-açúcar). Por esta razão, econômica, a Jamaica foi um pólo receptor de mão-de-obra escrava, negros provenientes de diferentes regiões da África, a partir de seu descobrimento, por Cristóvão Colombo, em 1494. A Ilha passou quase dois séculos dominada por espanhóis até ser capturada definitivamente pelos ingleses. Chamado de Patois, (patoá) o dialeto rasta se estrutura sobre duas técnicas ou modos de apropriação e resignificação de termos, herança colonial da mistura entre a língua inglesa e línguas africanas. A primeira técnica é o sincretismo semântico; a segunda, fundamentada em um dogma religioso arcaico, reside em uma mística utilização do pronome pessoa de primeira pessoa do singular: “Eu” ou “I”.
O sincretismo semântico rastafari promove a junção de palavras ou de fragmentos de palavras, como prefixos, radicais, produzindo uma resignificação dos termos formadores sem, contudo, extinguir completamente, o sentido anterior das palavras em seu uso original. Os novos conceitos expressam conceitos abstratos, subjetividades relacionadas às percepções, as vivências do que se utilizam deste idioma. Em muitos casos, a junção dos termos confere ao neologismo (nova palavra) um conteúdo nítido de crítica político-social e conseqüente afirmação de uma ideologia de oposição à situação a que faz referência. Neste tipo de sincretismo, as palavras não se somam simplesmente, elas se relacionam por intersecção de significados, por qualidades comuns aos objetos aos quais se referem. São exemplos deste sincretismo termos como:
downpressers = down ^ opressers
O termo reúne down=baixo e opressers=opressores, objetos que têm como atributo em comum um valor de negatividade existencial que pode ser traduzido pela compreensão de que opressores são depressivos, são down, deprimentes, baixo astral. Em outros exemplos, a mesma lógica se impõe nos casos seguintes:
Poulitricks: políticos “dos truques”, trapaceiros, corruptos.
Shity: city + shit reunião afirmativa de opinião significando que “cidade” implica “merda”, má situação, ou, em resumo, cidade-de-merda; ou ainda:
SHISTEM: (sistema-porcaria)
SHITUATION:. (situação-porcaria, encrenca).
EU: LEMBRANÇA DE DEUS
A utilização do pronome “EU’’ é a segunda característica da linguagem rastafari. Este pronome é usado como prefixo e sufixo ou como parte de termos compostos. Em várias expressões substitui os pronomes você-tu e nós na comunicação interpessoal. Esta gramática estranha, que privilegia a primeira pessoa do singular, se explica como prática mística, exotérica (de domínio público). Suas raízes, entretanto, são “esotéricas” (com S e não com X), ou seja, não são de conhecimento do povo mas, antes, pertencem ao conhecimento da Tradição das Ciências Ocultas, do Hermetismo, ou seja, a razão da utilização peculiar do EU na língua rastafari somente pode ser explicada por Iniciados Ocultistas.
Em todas as religiões do mundo, o primeiro dos milhares de nomes de Deus é “EU SOU” ou ainda “EU SOU AQUELE QUE SOU” ou “EU SOU AQUILO QUE É”. Esta foi a resposta de Jeová (Yahvé – Jha+Yehva) quando Moisés, no alto do Monte Sinai, perguntou ao Deus que o guiara até ali “como chamá-lo?”, “como nomeá-lo perante o povo?” (BÍBLIA SAGRADA, Êxodo). Moisés é um personagem dos livros sagrados judaicos porém “EU SOU” já havia se manifestado e assim mesmo se identificado em tempos muito mais recuados, na Índia dos Vedas, escrituras que contêm um Livro da Criação.
Nesta Cosmogênese hindu, o Universo objetivo nasce quando “o UM” em sua infinita solidão, tem uma primeira percepção de si mesmo (do divino self). No despertar de um Manvatara (ciclo de atividade do Universo) exclama “EU SOU!” - e ao acrescentar: “EU SOU ISTO!”, projetou a partir do seu SER ABSTRATO E IMPLÍCITO TUDO, todas coisas que existem, existiram e existirão, no Universo explícito, objetivo.
EU SOU, como primeiro e único e verdadeiro nome de Deus, “PRIMEIRA PESSOA DE UM SINGULAR”, é uma firmação evidente de um dos três atributos divinos: a ONIPRESENÇA (além da onisciência e da onipotência). Onipresente, de fato, significa “presente em todo lugar, em tudo”. A recorrência ao pronome EU, sua repetição na linguagem rastafari, deve-se, portanto, ao sentido mais elevado que este monossílabo encerra. Em De Magistro, Santo Agostinho (mestre filósofo medieval do cristianismo católico ocidental) expõe o seguinte pensamento: se Deus de tudo sabe porque deve o homem rezar, pedir graças ou perdão se, de antemão, Deus já está a par do que se passa em nossas vidas?
O sábio da Igreja conclui que rezar é um exercício mental que o homem faz; um exercício de memória e auto-condicionamento. Quando reza, em recolhimento, “na câmara secreta de seu coração”, concentrado na oração, o homem lembra ou re-lembra a si mesmo seus erros e acertos; ele se corrige, se perdoa e se premia. Ao rezar o homem se conecta com presença de Deus que nele habita nele próprio, homem, posto que Deus é onipresente.
Psicólogos e ocultistas distinguem, na psique humana dois “EUs”. Um, objetivo e aparente. É o EGO, personalidade condicionada por família e sociedade. O EGO é marcado pelo nome e por suas referência mnemônicas (lembranças, memória) de tempo e lugar. O OUTRO EU, é chamado EU SUPERIOR cuja existência antecede e transcende o EGO. A característica do EU SUPERIOR é a INDIVIDUALIDADE, que não se confunde com personalidade e subsiste para além de nomes e registros civis.
Os rastafaris empregam a sonoridade da palavra EU pela ressonância (força vibratória) de seu significado ancestral e mesmo a-temporal. O EU ou I está presente em composições de vocábulos e expressões idiomáticas como lembrança cotidiana e constante (1°) da supremacia de Deus – O EU SUPERIOR; (2°) da identidade entre Homem e Deus por sua conexão metafísica. A excentricidade deste modo de falar funciona como uma espécie de didática para a reeducação da percepção self – o si mesmo – como algo maior que o Ego.
Quando um rastafari diz “I and I will be there” (Eu e eu estaremos lá) ao invés de I and he, ou I and you, (eu e ele, eu e você), a frase repercute no inconsciente como uma negação da Personalidade-Ego condicionado, contrapartida de afirmação do Eu-Superior-Indivíduo-Uno com o Todo, Uno com Deus. Em outro caso, o pronome é usado como prefixo indicativo de identificação entre pessoa-objeto-Deus, reconhecendo a unidade divina como essência da diversidade aparente entre as coisas. São exemplos:
I-Tal: Eu-comida, Eu-alimento, ou Eu-Vital, Eu-coisa-vitalizante
I-shence: incenso, Eu-Incenso
I-praises/I-ses: Eu-oração
I-reation=I-creation: Eu-Criação
I-wer= I-power: Eu-poder
Em todos os casos, o sentido da composição é a afirmação do EU SOU, referência ao primeiro nome de Deus, EU, revelador da VERDADE UNA oculta em Maya – a ilusão da realidade múltipla. Dizer Eu-Vital é resumir o pensamento: Eu SOU este ser e também SOU este outro ser, alimento, substância vital. Então afirma-se EU SOU ÁRVORE, EU SOU ETIÓPIA, EU SOU VOCÊ, como declaração verbal de reconhecimento da onipresença de Deus porque Deus é tudo e todos; é incenso, é alimento, á água, pedra, vento, palavra, silêncio, poder, criação, planeta e grão de areia. Deus é todo tipo de SER: pedra bruta, mineral, planta, micróbio e também humano, racional, I-Tal – Tudo no Todo é Vital.
A utilização mística do pronome EU na linguagem está ligada, portanto, às influências religiosas que orientam o movimento da coletividade ou comunidade rastafari mundial. Os rastafaris, hoje, são como uma espécie de nação sem território ou representação política oficial. A Nação Rastafari se institui pelo compartilhamento espontâneo de valores ideológicos, filosóficos e religiosos. A ideologia se posiciona como crítica aos sistemas políticos vigentes: capitalismo neo-liberal e socialismo, meros rótulos impotentes frente aos abusos dos egos governantes das maiores potências do planeta.
A filosofia destaca os aspectos metafísicos da ontologia, do SER do homem e do Universo, enfatizando a realidade sutil ou subjetiva do EU-Superior através do qual se explica a Unidade na Diversidade. Como religião, o rastafarianismo, apresenta um quadro de sincretismos onde o cristianismo predominante incorpora crenças, rituais, usos e costumes do judaísmo, do hermetismo gnóstico e até do islamismo, que também é uma religião constituída de mistura judaico-cristã.
Embora tenha surgido na Jamaica, a principal inspiração da cultura rastafari é a civilização Etíope, antiga Abissínia, considerada pátria-mãe de todos os cristãos africanos. Assim como em Igrejas mais antigas, como a Judaica, a Cristã Ortodoxa, a Católica Apostólica Romana, a Islâmica, o pensamento religiosos rastafari tem diferenças doutrinárias internas que dão origem a diferentes congregações. As mais conhecidas são: As Doze Tribos de Israel, mais ocidentalizada, os Nyabinghi e os Bobo Ashanti, afro-orientalistas que adotaram práticas de origem judaica e muçulmana evidentes tais como: proibição de comer carne de suínos, prescrição de ocultar os cabelos em público e certas regras aplicadas à conduta das mulheres.
Estas restrições poderiam ter suas origens rastreadas em épocas remotíssimas, mais uma vez, passando obrigatoriamente pela Índia dos Brâmanes e pela herança de uma das mais antigas das tribos judaicas, os proscritos Essênios, apontados, historicamente, como prováveis iniciadores do Cristo Jesus e que até hoje conservam seus costumes habitando o vale da Cachemira, norte da Índia.
Doze Tribos é uma congregação mais liberal no que se refere a costumes. Sua mensagem messiânica afirma uma fé inabalável no retorno do Salvador (Messias, Cristo). É uma religiosidade profética e apocalíptica, recomendando o estudo metódico da Bíblia Católica Apostólica Romana e também de textos Apócrifos (não reconhecido pelo Vaticano). Em meio a estas diferenças, a reverência à supremacia divina, a submissão à vontade do incognoscível EU SOU, é um traço de união não só entre as congregações Rastafari como também, entre os Rastafari e inúmeras outras correntes do pensamento teológico mundial.
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